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Precisamos falar sobre Di(c)tadura

“Otra estación importante es la primavera. A mi mamá no le gusta la primavera porque fue en esa estación que aprehendieron a mi papá. Aprendieron sin hache es como ir a la escuela. Pero con hache es como ir a la policía”.

Beatriz (Las estaciones), Primavera con una esquina rota, Mario Benedetti

 

Deixai toda esperança, vós que entrais! É com essa frase que o poeta Dante Alighieri nos espera, na companhia de seu guia, o poeta latino Virgilio, às portas do Inferno. Das imagens horrendas ao encontro com Beatriz, às margens do Rio Lete, no Purgatório, onde ao poeta é permitido o apagamento de suas memórias, vamos caminhando por cenas que recuperam simbolicamente muitas narrativas que nos contaram como parte das mitologias ocidentais.

Mas por que estou falando de Dante e Divina Comédia, numa coluna mensal sobre o trabalho com a Literatura em Língua Espanhola nas salas de aula? O que tem isso a ver com a tal ditadura que aparece no título? Será que é preciso, realmente, tocar nesse assunto?

Somos parte dessa história. E, a despeito das estratégias de apagamento, ela tem muito mais a ver com a gente do que muitos desejariam acreditar.

Assim como Dante, saio, ou melhor, entro à procura de Beatriz, mas não aquela cantada no século XIV. A minha é bem mais próxima de nós. Trata-se de uma menininha de oito anos, nascida num país que não nos é dito o nome, embora saibamos qual seja. Nossa Beatriz é uruguaia e, como ela, são as pessoas de sua família, personagens que nos contam, sob diferentes pontos de vista, suas vidas rasuradas pela última ditadura cívico-militar daquele país (1973-1985).

Nesse périplo, nosso Dante se chama Mario Benedetti, e sua Florença é Montevidéu. Como na história de Dante, nós, os leitores de Primavera con una esquina rota (1983), deixamos para trás as esperanças, mas não por entrar na alegoria do Inferno e, passo a passo, termos acesso a seus ciclos e horrores. Entramos na memória das ditaduras latino-americanas e, assim, nossa esperança, em Primavera, é arrancada. À força.

Entre o capítulo inicial “Intramuros” e o final “Extramuros”, reconstruímos as trajetórias de Santiago, seus amigos e familiares, personagens que compõem um pequeno núcleo que não deixa de representar uma relação muito mais ampla naquele contexto: os pais, as mães, os filhos, as filhas, os irmãos e os amigos dos presos políticos. Com experiências diversas a respeito da ausência, ouvimos as vozes do pai, da esposa, de um narrador que nos conta vivências tecidas paralelamente, do próprio autor (cuja marca reconhecemos por passagens biográficas), e da filha de Santiago: a pequena Beatriz.

Pelos relatos da menina, grande parte da história de um país submetido aos terrores da ditadura nos vai sendo aberta. O relato infantil, sublinhado pelo nonsense, transita entre a incongruência e a fantasia, mostrando-nos a aporia que um regime ditatorial pode significar. Ao questionar o tamanho da palavra Libertad, no capítulo “Beatriz (Una palabra enorme)”, a voz da criança nos alerta sobre nossa própria relação com o que significa estar livre.

Assim, descobrimos que nesse país sem nome “Libertad quiere decir muchas cosas” (BENEDETTI, 1983, p. 91). Entre tantas coisas que podem caber nesses sentidos, reconhecemos que, em uma ditadura, estar preso e sem liberdade não é alegoria, afinal, seu pai está em Libertad, isto é, na cadeia de segurança máxima Penal de Libertad, localizada a pouco mais de 50 quilômetros da capital uruguaia.

Ao esperar por seu regresso, Beatriz nos mostra a história de milhares de presos políticos como Santiago, com quem ela não se encontra há mais de cinco anos: “mi papá es un preso no porque haya matado o robado o llegado tarde a la escuela. Graciela dice que mi papá está en Libertad, o sea, está preso, por sus ideas. Parece que mi papá era famoso por sus ideas. Yo también a veces tengo ideas, pero todavía no soy famosa. Por eso no estoy en Libertad, o sea que no estoy presa.” (idem, p. 91). O olhar da criança, pela comparação dos “crimes”, nos coloca diante de um momento em que as esperanças precisam ser deixadas de lado. Como na alegoria do Inferno de Dante, estar em Libertad é estar à disposição de um Estado em que o desaparecimento faz parte de um plano minucioso de silêncio e apagamento de “ideas”.

Não menos importantes que esta personagem estão as outras que compõem sua família e esperam pela volta, com vida, de Santiago. Nenhum deles poderá apagar suas memórias. É que, aqui, lembrar se torna um dever; um compromisso que sai da família para ser compartilhado socialmente. A história passa a ser nossa, inscrevendo-nos numa partilha afetiva capaz de garantir que o terror ditatorial não retorne.

A presença de Santiago é central. Benedetti não permite seu desaparecimento, dando a ele e a seus familiares o que muitos não tiveram: um lugar no reencontro. E isso pode ser quase uma primavera, mas sempre será con una esquina rota.

Mas por que precisamos falar sobre ditadura?

Quando levamos para a sala de aula este tema, através do trabalho com um livro como Primavera con una esquina rota, temos a possibilidade de debater a importância da memória e seu espaço na sociedade. Isto é, como se constrói, com quais vozes e quais sujeitos. É a memória como dever, o que colabora para a ampla rede de diálogos que pode e deve ser tecida com outras disciplinas, compondo um projeto para além dos muros da escola. Assim, a questão da identidade passa a ser debatida num panorama mais amplo, aproximando-nos de vidas e histórias que se cruzam com as de nosso país.

Como uma imagem dessa partilha, o filme brasileiro O ano em que meus pais saíram de férias (Cao Hamburguer, 2006) pode oferecer um interessante diálogo, ao nos mostrar, pelo olhar do menino Mauro, um tempo de terror que também nos tocou viver. E, se falar sobre isso, atualmente, pode nos causar “certo” temor, não falar é autorizar o esquecimento. Ao contrário de Dante, não temos saída. Seu Rio Lete é intraduzível. Do lado de cá, as águas nos lembram do destino de milhares de corpos que foram jogados, com vida, no Río de la Plata. E, para nós, o curso dessas águas é insone, assim como pode ser a literatura.

Essa é a nossa esperança.

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Maria Fernanda Gárbero

Maria Fernanda Gárbero é mineira, escritora, tradutora e professora de Teoria da Literatura. Há mais de duas décadas, dedica-se às pesquisas sobre maternidade, silenciamento da mulher e estratégias de resistência pelas artes. É autora do livro Madres: à memória do sangue, o legado ao revés (NEA, 2021), Antígona Bel (Telha, 2022) e de diversos artigos sobre tradução teatral e recepção de personagens trágicas na literatura, no cinema e no teatro. Traduziu para o português a Trilogia trágica (Kallaikia, 2019), de Mariana Percovich, e A fronteira (UFPR, 2021), de David Cureses, entre outros textos do espanhol, italiano, catalão e galego. Ao lado do ator e diretor teatral Guarnier, dirige a Cia. de Teatro Skené, na UFRRJ, campus Baixada Fluminense.

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