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Tiro, porrada e bomba!

Por recomendação de um colega que é professor de Literatura Hispano-Americana na Universidade Federal do Rio de Janeiro, há algum tempo conheci o romance Fiesta en la madriguera (Festa no Covil, Companhia das Letras, 2010), do escritor mexicano Juan Pablo Villalobos. Naquele momento, conversávamos sobre as imagens violentas com que as crianças lidam através dos jogos e da televisão de forma geral. Embora reconhecêssemos que isso fosse cada vez mais comum, partilhávamos – e seguimos partilhando – de um tremendo desconforto diante de tal panorama.

Quando ainda lecionava no Ensino Fundamental, lembro-me dos meninos em polvorosa por conta de um jogo de videogame cuja pontuação era medida pelo extermínio; estavam alucinados e, ao mesmo tempo, alheios à violência que estava ali junto de todos nós, em pleno maio de 2006 em São Paulo. Enquanto a polícia e o PCC mandavam seus recados cidade a fora, dentro de sala, alunos de doze e treze anos narravam, aos gritos e gargalhadas, simulacros de experiências que não deixavam de nos informar sobre o pânico concreto e os boatos paranoicos que tomaram conta daqueles dias.

Ao ler a história do menino Tochtli, protagonista de Fiesta en la madriguera, as lembranças de meus ex-alunos voltaram depois de dez anos misturadas com vivências de outras crianças mais próximas a mim agora. O cenário do pequeno mexicano pode ser diferente de tudo isso, assemelhando-se mais rapidamente ao que vemos em outros exemplos de ficção, como o da série Narcos. No entanto, pela possibilidade que a literatura nos oferece de ler outras realidades, o cartel da droga onde Tochtli vive enclausurado não deixa de apontar para um olhar às violências e suas muitas representações.

Embora seu pai Yolcault, chefe do tráfico naquela região, demonstre um cuidado ambíguo, que oscila entre a preservação e a super exposição (ora projeta-lhe um espaço alheio aos crimes, ora imagina seu cartel como herança),  vemos que os desejos da criança correspondem a um imaginário sem questionamentos éticos. A personagem infantil se “divide” entre as mortes minuciosamente relatadas pelos capangas do pai, os jogos de última geração de seu Playstation, o contato com o professor que tenta lhe apresentar um mundo diferente daquele, um tédio constante e o desejo disparatado de ter um “hipopótamo anão da Libéria” para completar seu “minizoológico”. Dessa mistura de passagens, vamos compreendendo uma convivência com a violência apartada da sensação de espanto. Aliás, isso não convém ao “pequeno príncipe herdeiro do narcotráfico mexicano”, como não se cansa de dizer Yolcault.

A junção do cômico com o nonsense nos ajuda a recompor ficcionalmente espacialidades que não estão tão longe de nós. Pensando bem, Tochitli existe e tem muitos nomes, idades e desejos. O livro, ao nos apresentar essas vidas bricoladas de inocência e brutalidade, também nos provoca com relação aos elementos presentes nas infâncias ao nosso redor. Do que vi em 2006 em sala de aula ao que vejo hoje entre as crianças com que convivo, só consigo pensar num aumento perverso de jogos e brinquedos que tratam da violência sem nos permitir o espanto. Não há choque. Por outro lado, há algo bem mais cruel: há medo do Outro.

Sem moralismos ou reprodução da “tia chata”, recuso-me a ver com normalidade uma criança brincando com um “caminhão-caveirão”, ou emulando o Rambo alucinado, cheia de “munições” para sua gigantesca “nurf”. Infelizmente, enquanto confinamos as crianças a paranoias que compõem nosso legado do horror (quase como o cartel-herança do pai de Tochitli), a vida do Outro parece cada vez mais distante e sem valor. Como um efeito colateral disso, o medo se torna cada vez mais avassalador e, a reboque, encharcado de preconceitos.

Fiesta en la madriguera por todos esses aspectos pode ser um excelente material para as aulas de língua espanhola. A leitura contextualizada, aliada a uma potente discussão social, certamente promoverá um debate crítico a respeito das experiências contemporâneas, além de colocar os alunos diante contradições que podem colaborar para um exercício mais sensível e um olhar mais empático.

A seguir, segue um áudio da discussão do livro e sua relação com outro romance, El ruido de las cosas al caer, de Juan Gabriel Vásquez, a partir de pontos que unem ambas as narrativas como leituras do narcotráfico na ficção e dos processos de violência que nelas encontramos.

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Maria Fernanda Gárbero

Maria Fernanda Gárbero é mineira, escritora, tradutora e professora de Teoria da Literatura. Há mais de duas décadas, dedica-se às pesquisas sobre maternidade, silenciamento da mulher e estratégias de resistência pelas artes. É autora do livro Madres: à memória do sangue, o legado ao revés (NEA, 2021), Antígona Bel (Telha, 2022) e de diversos artigos sobre tradução teatral e recepção de personagens trágicas na literatura, no cinema e no teatro. Traduziu para o português a Trilogia trágica (Kallaikia, 2019), de Mariana Percovich, e A fronteira (UFPR, 2021), de David Cureses, entre outros textos do espanhol, italiano, catalão e galego. Ao lado do ator e diretor teatral Guarnier, dirige a Cia. de Teatro Skené, na UFRRJ, campus Baixada Fluminense.

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